quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Lucas Prado Kallas - Os segredos da cerveja belga


Famosa por seus chocolates e batatas fritas, Bélgica se destaca no mercado mundial de cerveja utilizando tradições medievais

fonte | A A A
Além de ter a reputação de produzir a melhor cerveja do mundo, a Bélgica também é o lar da maior cervejaria do mundo. A Anheuser-Busch (AB) InBev, sediada em Leuven, uma pequena cidade universitária nos arredores de Bruxelas, produz uma em cada cinco cervejas vendidas ao redor do mundo. Do outro lado da rua, a ultramoderna cervejaria da Stella Artois produz uma das marcas internacionais mais famosas da empresa. Suas impressionantes instalações ilustram a reverência que os belgas mantêm por sua cerveja.

popular do país. A variedade belga inclui uma enorme quantidade de cervejas de trigo, cervejas escuras, avermelhadas, composições regionais baseadas em antigas receitas, e as cervejas naturalmente fermentadas do Vale do Senne, um anacronismo que se manteve vivo apenas na Bélgica. O país, generosamente compartilha suas criações com o resto do mundo. Mais da metade da cerveja produzida na Bélgica é exportada para o resto do mundo.
Como uma nação que, exceto por seus mexilhões e suas batatas fritas, seu popular chocolate, e seus eurocratas (o Parlamento Europeu foi construído sobre uma antiga cervejaria de Bruxelas), teve pouco impacto no mundo, passou a dominar o mercado da cerveja? A resposta está na híbrida história e cultura dos belgas.
A cerveja é para a Bélgica o que o vinho é para a França. “É parte integrante da cultura local”, diz Marc Stroobandt, um especialista em cervejas belgas. Os belgas a produzem há muito tempo: diz-se que a cerveja chegou à região com o Império Romano, e muitas cervejarias belgas têm origem na Idade Média. A Stella Artois é originária da cervejaria Den Hoorn, fundada em Leuven em 1366, e o símbolo da antiga cervejaria até hoje permanece no rótulo da cerveja. Sebastian Artois levou o nome atual à cervejaria em 1717.
A geografia também ajudou. Uma região propícia para a produção da cerveja se estende pelo norte da Europa, onde é frio demais para o cultivo de uvas que possam ser transformadas em um vinho decente. Mas o clima e a terra são ideais para o cultivo de cevada e lúpulo, os ingredientes básicos da cerveja. A Bélgica também é conhecida por sua água de alta qualidade, vital para a produção de uma boa cerveja. Como destaca Sven Gatz, diretor da Federação Belga de Cervejarias, o fato do país ser um ponto de encontro entre as Europas latina e germânica, permitiu à Bélgica reunir influências de ambos os lados, e isso ainda pode ser sentido no sabor da cerveja local.
Ervas como coentro e alcaçuz, temperos como o gengibre, e frutas como cerejas e framboesas, que já foram populares entre os cervejeiros franceses, continuam a ser usadas na Bélgica, mesmo depois que o lúpulo ganhou espaço na produção, nas regiões onde a influência francesa é maior. A mistura de ervas e frutas, conhecida como gruyt, era dominada pelos monges, que vendiam cerveja para arcar com os custos de manutenção de suas abadias, e isso pode explicar porque o lúpulo foi considerado uma “fruta do diabo”, que “causava melancolia nos homens”. O lúpulo e o gruyt travaram uma intensa batalha de publicidade durante a Idade Média, e até o fim do século XIX, eram os monges que dominavam a arte e a tecnologia da fabricação da cerveja. A Reinheitsgebot, uma lei da Bavária de 1516, que bania qualquer ingrediente além de água, cevada e lúpulo nas cervejas explica porque as cervejas à base de lúpulo são mais populares nas regiões germânicas (e menos católicas) da Bélgica.
Logo, a turbulência histórica do país estimulou suas cervejarias. Em um ponto ou outro da história, a maioria dos grandes poderes da Europa controlou a Bélgica, deixando no país novas influências e sabores. Os holandeses, os últimos a ocuparem a Bélgica antes da Primeira Guerra Mundial, enviaram comerciantes às Índias em busca de novos temperos, e muitos deles acabaram sendo introduzidos nas cervejas belgas (um dos motivos para que os belgas expulsassem os holandeses e declarassem independência em 1830 foi sua oposição aos altos impostos cobrados sobre as cervejas).
Todos esses fatores encorajaram novas experiências. Além de ervas, temperos e lúpulo, outras substâncias estranhas como mostarda, café e chocolate também foram adicionadas à cerveja belga. Pete Brown, um escritor britânico especializado em cervejas, enxerga nas “estranhas e loucas” misturas das cervejarias belgas uma ligação com outro presente dos belgas ao mundo: o surrealismo.
Discussões nos bares belgas não têm como tema assuntos triviais como o futebol e a política. Os debates mais furiosos costumam discutir qual o copo certo para que uma Stella Artois seja servida, e garçons que se esqueçam de perguntar se você quer que sua garrafa de Duvel seja levemente agitada para que a levedura seja melhor misturada, não devem esperar gorjetas. Embora as cervejarias tenham muito a celebrar, a Bélgica como um todo permanece problemática. Entre as principais questões que assolam o país está a amarga divisão política entre a Valônia e Flandres, que deixaram a Bélgica sem um governo permanente durante a maior parte de 2011 e 2012. Uma dissolução do país já não parece mais algo impossível. Ainda assim, se os belgas precisarem afogar suas mágoas, eles ao menos têm uma enorme variedade de cervejas para escolher.
Fontes: The Economist - Brewed force

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